Ano 7 - Nº 7 - 1/2013

Ambivalência de uma Presença: O Francês no Brasil

Resumo

Comparado à sua audiência no passado, o francês encontra-se, hoje, no Brasil, em uma situação ambivalente, ao mesmo tempo empurrado para as margens das políticas educativas e dando sinais de possível renovação de presença. Considerando que para ter uma chance de concretizar-se a figuração desta presença deve ser encarada hoje  na realidade da sua ausência, destaca e explora-se aqui as formas e razões de tal ausência, relacionando a precária das políticas institucionais em matéria de línguas às pressões das representações sociais por um lado de um plurilinguismo restrito a um bilinguismo português / língua do mercado, e por outro lado da dinâmica das línguas reduzida a uma função  instrumentalo-empresarial. Frente a este vácuo plurilingue se condiciona, em sequência, qualquer reativação da aprendizagem do francês no país à viabilização de uma educação não só plurilingue, mas ao plurilinguismo, o que implica que esta última fosse aprovada  pelo sentimento público e sustentada por uma transformação das percepções da própria língua francesa.

Palavras-chaves: políticas educativas, plurilinguismo, representações sociais, ensino do francês.

Abstract

Compared to its audience in the past, french language is today in Brazil in an ambivalent situation, at the same time pushed away on educational periphery and showing signs of possible renewed presence. Considering that if it will  have a chance to materialize itself, the indication of this presence must be seen today in the reality of his absence, the purpose of this paper is to examine the ways and reasons for such absence, relating the precarity of institutional language policies, for one hand with the pressures of social representations of plurilingualism restricted to a bilingualism portuguese / global market’s language, and on the other hand with a reduction of the role of foreign language to a function instrumental-managerial. Therefore, in view of this vacuum plurilingual, any reactivation of learning French depends on the viabilization of an education not only plurilingual but  bringing up to plurilingualism, which implies that this last has to be approved by public sentiment and sustained by a transformation of the perceptions of the French language itself.

Keywords: education policy, plurilingualism, social representations, french teaching.

 Ser ou não ser... No caso do françês, como língua estrangeira, hoje, no Brasil, diria que ele está apesar de não ser: ao mesmo tempo mais ausente que nunca dos conteudos obrigatórios da educação básica (encerramento do ensino do francês na grade curricular e cancelamento de sua prova no ENEM), assim como das carreiras científicas e técnicas no superior e do espaço de formação da opinião pública que são os mídias, todos pegados à necessidade da instrumentalização profissional da língua do mercado, e continuando ou reaparecendo presente em disposições acadêmicas, alternativas educacionais e cooperações sensíveis às necessidades de formações abertas à mutualização dos conhecimentos.

Houve uma época no Brasil, todo mundo o sabe, em que o françês era a lingua extrangeira de referência, até uma língua culta, para quem pretendia destacar-se na vida econômica, social e cultural do país. Basta abrir qualquer romance para dar-se conta de quanto se falava francês naquele Brasil:

– Meu bom amigo Toninho /.../ te tenho como irmão /.../ – Obrigado, sinto-me assim tambem /.../ Le sort fait les parents, le choix fait les amis /.../ “ – Um momento, Toninho, não queres là alguma chelpa para te ajudar /.../ – Ah, deixa estar /.../ O almoço vale bem um missa, n’est-ce pas? (RIBEIRO, 1984: 207 e 299).

Era o francês, em cada canto discursivo, tanto para figurar a autoridade do provérbio como para prevaler-se do acordo do interlocutor. Houve uma época....

Mas é uma época que acabou. O que não significa que o francês não pode estar mais na agenda discursiva brasileiro, manifestando a busca recíproca de novas convivências. Só que para isso tem que encarar a ambivalência atual da sua (des)integração na sociedade brasileira, o que implica de consentir a contemplar-se antes de tudo na realidade da sua ausência para pensar as alternativas da sua presença na coletividade brasileira.

É precisamente o objeto desta contribuição: explorar as formas e as razões do esgotamento atual da prática do françês em faixas institucionais, mediáticas e subjetivas determinantes da sociedade brasileira, não para relativiza-lo, mas para articular aos efeitos do lugar vazio as condições e os termos de uma presença renovada, que possa garantir a (dis)continuidade do seu processo, por ser mais ciente do que se opõe a ele e dele não pode funcionar.

Travessas de uma ausência: um plurilinguismo dual

Que formas toma hoje a circulação rarefeita do françês na sociedade brasileira? Fundamentalmente direi que tal rarefação aparece na forma de um plurilinguismo institucionalmente e simbolicamente restrito a uma instrumentalização de um bilinguismo língua  materna (LM) / língua estrangeira (LE).

A formula tem um ar de paradoxo. É que remete a um paradoxo nacional mesmo, pelo menos no (outro) olhar do (não) estrangeiro que me tornei nessas terras. O expressaria da seguinte maneira: apesar que o Brasil seja  orgulhoso do imprescindivel valor do seu patrimonio linguístico-cultural – cf. por exemplo “o Parque Indigena do Xíngu /.../ é criação amororosa /.../ o mais belo mosaico  lingüistico-cultural do mundo de acordo com a Unesco” (Folha de São Paulo / FSP, 14.03.11: A3) – , e portanto consciente que  uma língua cujo conhecimento e uso se perdem, significa uma amputação cultural e um critério de distinção a menos no palco internacional, as duzentas línguas indianas todavia faladas no território estão pouco vinculadas à excelência nacional, e as línguas estrangeiras, outras que inglês, estão a procura dos seus espaços num paíis que pretende não so impôr limites à hegemonia norte-americana e a extensão de um mercado dolarizado em inglês, mas tambem aparecer, ao lado de seus homólogos do BRIC, como o arauto de  alternativas a uma mundialização unidirecional.

A precaridade do lugar do ensino de línguas na educação formal, seja básica ou superior, demarca  a abrangência institucional deste paradoxo.

Na educação básica, embora os benefícios do ensino de LE sejam oficialmente nitidamente apontados – “O desenvolvimento da habilidade de entender / dizer o que outras pessoas, em outros paises, diriam em determinadas situações leva /.../ à compreensão tanto das culturas estrangeiras como da materna” (SECRETARIA DA EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL, 1998: 37) –, e apesar dos avanços ligados a institucionalização pela Lei Federal do 7. 07. 2005 (art. 26, 32 e 36 da MDB) na escolaridade  secundária de uma segunda LE obrigatória, no caso o espanhol, ao lado do inglês, são compromissos com a diversidade linguística que cohabitam com três formas de exclusão: pelos recursos, no sentido que o custo adicional gerado pela Lei de 2005, nos campos da formação de professores, de volume de cursos e de equipamentos, refrea consideravelmente o impacto da resolução, inclusive no ensino médio, onde a introdução obrigatória do espanhol teria que ser efetiva desde 2010; pela hierarquização da oferta, na medida que, sob o efeito da exclusividade curricular otorgada à duas delas, todas as outras se encontram necessariamente relegadas em posições accessorias e opcionais, localizadas fora da programação curricular, relegação esta que atinge especificamente o francês que era ainda, antes da MDB, a segunda LE mais progamada no currículo escolar obrigatorio; uma exclusão enfim tambem pela avaliação das aquisições, desde que o novo formato do ENEM  autoriza unicamente inglês ou espanhol na prova de LE, uma restrição que so pode ter efeitos negativos, a montante (porque estudar LE que não estão consideradas pela certificação federal) e a jusante com a substituição progressiva dos vestibulares pelo ENEM, podendo ela  reforçar o  monopólio das duas LE do ENEM no superior.

Na educação superior,  apesar das declarações iteradas dos responsáveis  acadêmicos a favor dos conhecimentos linguísticos, como requisito para a promoção e a expansão dos intercâmbios e da mobilidade internacional, particularmente na hora do novo programa Ciência sem Fronteiras  que visa a disponibilizar  até 101 mil bolsas nos proximos quatro anos (das quais 10.000 na França), o paradoxo não deixa de existir. Só que a carência de LE toma a forma de um duplo  desequilíbrio: por um lado entre as universidades  públicas, onde não faltam línguas para estudar, e as particulares que dispensam os ensinos de línguas, ou os reduzem à uma escolha entre inglês e inglês, no melhor dos casos, o que alarga grandemente  o quadro da carência em LE, jà que a rede particular soma 80% das matrículas no ensino superior; e por outre lado no âmbito mesmo das universidades  públicas, entre as faculdades de letras e  humanidades, que concentram os cursos de línguas, e as de ciências e técnicas que, nas condições mais  favoráveis, só oferecem inglês enquanto matéria optativa.

Sendo efeito de um paradoxo, o que demonstram estas formas de ausência das LE no sistema educativo não é a falta de compromisso institucional com a pertinência e a diversificação dos ensinos linguísticos, mas meramente o fato que eles não constituem atualmente uma prioridade do sistema. Tem outras emergências. é que, apesar das melhorias significativas obtidas nos ultimos tempos na extensão da cobertura escolar e  (re)distribuição mais equitativa dos recursos no territorio todo, a educação continua confrontada a desafios imensos, entre os quais notadamente a baixa taxa de matriculas a todos os níveis do sistema educativa, com só 51% dos jovems completando o ensino fundamental, 33% o ensino medio e apenas 14% o ensino superior, dos quais só 3% tem vagas no superior público (segundo  Síntese dos Indicadores Sociais do IBGE de outubro 2009). Se  acrescentamos – se a estas limitações a constatação que 44% dos alunos do terceiro ano do ensino fundamental não dominam os conhecimentos necessários para a leitura, 46% para a escritura e 57% para matemática, se entende que fica priorizado um binôme básico, português e matemática, que pode ser trinôme ao incluir as Ciências, mas sem mais aberturas à cultura linguística não maternal.

A falta de investimentos no setor, ligada à sustentação de outras prioridades, determina, sim, a fragilidade do ensino institucional das LE. Mas não basta, ao meu ver, para explicá-la. O que a explica em profundidade, me parece, e até a justifica na implementação do que existe, são as representações mesmo do plurilinguismo e da função das línguas, vigentes no debate  público, desde que vem à tona a questão linguística. São estas representações que destacarei agora, demarcando sinteticamente os seus contornos no discurso   midiáticoe estudiantil.

BABEL HAITIANA: No país caribenho, aulas são em francês, idioma pouco entendido pela massa que fala a língua crioula, criando “apartheid linguístico” entre haitianos (FSP, 14.04.11: A26 Mundo).

Como o comprova terrivelmente este lide  da Folha de São Paulo,reduzir drasticamente a vastidão do espectro plurilíngue de Babel ao movimento vibratório binário de só duas línguas é uma estratégia recorrente que  divulga uma visão dual do plurilinguismo, construindo para valer socialmente a representação de um plurilinguismo restrito à não mais que duas línguas.

Como a extrema diversidade linguística que caracteriza a humanidade inquieta, ameaçando descontrolar, ao cruzar os aportes de seus milhares de línguas, a universalização da identidade de uma mítica aldeia global,  finge-se que a maldição de Babel esta iniciando seu processo perturbador, logo quando só duas línguas entram em contato, o que leva a imaginar a devastação  à qual levaria a co-presença na comunicação de mais e mais línguas.

Vale a pena ressaltar que o contato bilíngue não deixa de ser percebido como particularmente prejudicial, quando pelo menos uma das línguas  é minoritária, ou melhor,  minorizada, como é o caso do crioulo. Por isso, na abordagem da Babel haitiana pela Folha, só tem duas línguas, francês e crioulo, nitidamente separadas, excluindo qualquer contato, apesar de não poder ter língua , como se sabe, que não seja de línguas em contato, como o atesta em Haiti por exemplo a alta produtividade tanto de um francês crioulizado quanto de um crioulo afrancesizado.

Já quando se trata do contato entre idiomas de alcance atualmente internacional, anglo-saxão e latino no caso, o receio some:

Os colégios bilíngues oferecem o ensino de um segundo idioma – predominantemente o inglês – /.../. A língua é utilizada em todos os momentos: das aulas  à fila do lanche /... / “Como vou misturar um idioma anglo-saxão a um latino? Isso é impossível”, diz a proprietária da Escola do Max, Leila Nogueira (FSP, Caderno Escolha a escola, 26.09.10: 3-4).

E altamente significativo de observar aqui que se o receio some, é porque se acredita que inglês descarta qualquer risco de mistura com outras línguas, o que corresponde a uma percepção imaginária, efeito da aparentemente autonomia globo-transcendental desta língua, já que nem mais nem menos que outra língua, o inglês precisa por suposto de entrelaçamentos com as demais línguas para permanecer vivo. Em contraste com tal garantia de pureza que dá ao inglês o seu estatuto soberano, vale a pena notar que as línguas latinas não deixam no mesmo movimento imaginário de ameaçar quem pretende aprendé-as:

  Com as línguas derivadas do latim (português, espanhol, francês, italiano) devemos ter cuidado redobrado, pois são muitas as palavras que, por semelhança, são verdadeiras armadilhas da comunicação /.../ num enunciado que pode transmitir muitas idéias erradas (Corretor de Imóveis em revista, Dez 2011/Janeiro 2012:7).

Fica claro com estes dois últimos exemplos (que se esqueçem de recensear o romeno dentro das línguas latina, mas é justamente língua minorizada ...) que idealmente o plurilinguismo se vê assimilado nos discursos mais comums a um bilinguismo português / inglês ao ponto que, na ausência de identificação da segunda língua, o sintagma colégio ou ensino bilíngue, será necessariamente recebido enquanto sinônimo do binômio português / inglês.

De fato, completando o retrocesso do plurilinguismo a um mero bilinguismo, chocando-se com a pluralidade constitutiva de línguas e de valores do plurilinguismo, explicita-se repetitivamente que o modelo a ser adotado é aquele que realiza português e inglês de forma indissociavel:

Você fala inglês! Quem fala recebe sálarios melhores, porque no final da conta, num mundo globalizado a comunicação conta mais /.../. Em vez de falar mais ou menos uma terceira ou uma quarta língua, melhor falar só fluentemente inglês (GLOBO, 25.03.2011: Jornal nacional da meia-noite).

Vocês  vieram aqui para brigar porque é uma briga. Mas para vencer tem que saber cantar em inglês, saber as letras (SBT, 1.08.2011:  Qual é seu talento? ).

Taxistas do Aeroporto Internacional Juscelino Kubitschek se unem, deixam de fazer corridas e utilizam o horário para ingressar em curso de inglês (Correio Brasiliense, 19.06.2009, 26).

O inglês é mais do que nunca um pré-requisito para a maioria das vagas (vocesa.com.br, Agosto 2010:47).

Assim, todos os canais de notícias continuam amplificando, sem mesmo que a gente o percebe (e só por isso valeria a pena chamar a atenção sobre este empilhamento sem parar) a necessidade econômica e profissional do inglês, que concentraria em si mesmo todos os lucros possíveis do comercio e de um ofício bem sucedido, enquanto todas as outras línguas arcariam com o custo da gratuidade.

O que deve ser notado também neste investimento no inglês, é que basea-se sobre uma concepção exclusivamente instrumental da língua. Encostada no plurilinguismo restrito, esta  delimitação exclusiva da língua como vetor de uma comunicação meramente instrumental, com fim de rendimento profissional, descarta sua função fundamental de representação: para comunicar temos que ter algo a comunicar, que só pode ser representado, ou seja (des)construido pelo discurso. É uma otimização instrumental, sim, mas que ameaça os locutores, qualquer um de nós, e o próprio inglês, pelo pior: do lado dos locutores, pelo fato de desconhecer que se pensa com e na(s) língua(s), até para perder reflexivamente o conhecimento, e portanto que só tem pensamentos e verdades relativos às línguas-discursos que os (des)constroem; e do lado do inglês, ao ser reduzido a um aparato de segurança financeira e profissional,  pelo fato de não saber mais das aventuras intelectuais e culturais que ele fomenta e encoraja a viver no decorrer da sua enunciação, como qualquer língua.

Pois é, a evocação destas ameaças me da a oportunidade de esclarecer, para todos os efeitos práticos, que obviamente não é o inglês o inimigo, ou qualquer outra língua. É o inglês, ou qualquer outra língua, só: uma língua cuja situação de monopólio precariza as estruturas expressivas e creativas de todos os que não a tem como primeira, obrigando-os a lutar obstinadamente e/ou desesperadamente, para salvar as suas identidades e sociedades.

De uma certa maneira, frente ao monopólio de uma língua, so tem línguas minorizadas, internacionalmente ou localmente, cujos destinos estão por esta razão interdependentes. De fato, não são só as línguas de extensão internacional que tal exiguô plurilinguismo empurra nas margems do currículo educativo, mas, no mesmo movimento, as línguas autóctonas ou indígenas, segundo as denominações em vigor. Não é por acaso que é uma escola indígena, a Escola Estadual Txeru Ba e Kua-I, cujo nome guarani significa “deus celestial da sabedoria”, onde “nenhum dos alunos tem como primeira língua o português” que obteve a media mais baixa na sessão 2010 do ENEM no estado de São Paulo (Folhateen/ FSP, 3.10.2011: 5).

A estas representações midiáticas, reforçando-se mutuamente, somam-se as do público, como o ilustram, entre muitas outras, as seguintes respostas de estudantes, questionados sobre as suas representações do interesse e das funções da aprendizagem das línguas, no quadro de uma pesquisa realizada no ensino superior particular, com a colaboração da Profª Wilma Maria Ferreira no 2º semestre de 2011.2:

É extremamente importante, na administração de uma empresa, a correta utilização da língua materna /.../ uma vez que todas as informações no âmbito organizacional devem ser transmitidas com clareza e objetividade, /.../ escrever com clareza, coerência e concisão é uma vantagem competitiva capaz de elevar a imagem da empresa perante a sua clientela (IVSON  SERAFIM, 2011, aluno do curso de administração 1, FACIPE, Recife).

Para aqueles que desejam abrir sua própria empresa e futuramente expandi-la, tornando-a uma multinacional, tem que dominar o português e saber pelo menos o inglês que é a língua mais falada no mundo, a fim de estabelecer  uma boa comunicação com  o mundo ( RENATA ALVES, 2011, aluna do curso de administração 1, FACIPE, Recife).

Entendo também que, na administração como em qualquer área de atuação profissional, o idioma estrangeiro mais adequado e/ou fundamental é a língua inglesa. Tanto é /.../ que já estamos cada vez mais acostumados a falar expressões em inglês, que nem percebemos que estamos falando palavras de outro idioma /.../ (MARLUCE DE ARAÚJO, 2011, aluna do curso de administração 1, FACIPE, Recife) 

Assim anda o plurilinguismo na opinião dos futuros executivos, técnicos e agentes do mercado, maquiado em um bilinguismo, mantendo irredutivelmente juntas duas línguas só, o português e o inglês, para competir com maior benefício para si mesmo e para a empresa, no mercado interno e/ou externo.

Vale a pena notar a afirmação e a legitimação da clareza (cf. IVSON, mas a evocação da clareza é recorrente) enquanto critério, quase ontológico, da instrumentalização linguística para e pelo mercado. Repassa uma visão radicalmente funcionalista e transparente da comunicação, onde é a ordem das  ideias, sob o controle do sujeito, que ergue o discurso, e não os desnivelamentos das relações entre  signos e  línguas que (re)constroem significações cuja transmissão pode escapar  ao seu(s) co-enunciador(es). Discurso sem alteridades, na verdade discurso sem discursos: esta concepção, compartilhada pela maioria dos locutores pesquisados, contrapõe a hibridação plurilingue, fechando os rumos dos contatos de línguas e de suas alterações, fazendo como se não existissem, porque em tal perspectiva expressivista, não pode haver discurso que não pertença ao próprio sujeito, nem a uma língua só.

A pressão funcional e imaginária deste bilinguismo de globomercado é tal que a mistura torna-se então objeto de uma denegação, à semelhança daquela implicada nas seguintes afirmações do que os locutores representam-se como sendo só da ordem de um desejo:

Aprendermos outras língua(sic) é fundamental para nossa atuação como profissional (ANDRESSA CRASTO, Curso de Administração, Faculdade Facipe, Recife).

Não sei falar outros idioma(sic) ainda, pretendo aprender inglês (CAROLLINE SILVA, Curso de Administração, FACIPE, Recife).

O que têm em comum estes dois enunciados é um mesmo e impressionante lapso cavado em dois discursos que, fora isso não apresentam nenhuma falha. O fenômeno remete  à presença da marca zero, nas expressões “outras língua” e “outros idioma”dos quais se esperaria o plural, ou seja, outras línguas, assim como outros idiomas. Ao contrariar a expectativa de um plural, a sumida do “s” suspende literalmente a tese da multiplicidade das línguas que, alternativamente, fazem linguagem, para restringí-la a uma língua exclusiva: nos dois casos, o inglês.

Apesar de saberem da extensão da diversidade linguística, os dois sujeitos se encontram amarrados a uma segunda língua apenas, e isso sem nem ao menos se darem conta desta clausura.

Travessias de uma PRESENçA: PLURINGUISMOS ABERTOS

Frente à estiagem das políticas institucionais a favor do ensino de línguas e das representações públicas da amplitude plurilingue, será que tem espaços para o francês e a incorporação educativa da diversidade linguistica que não sejam só os sintomas de uma prática reduzida a sobrevivência?

No caso do francês em particular, alguns raios de luz clareiam a paisagem. Tem sinais, sim, de possibilidade de renovação de presença, até porque a denegação da extensão do plurilinguismo não descarta o desejo, necessitando mesmo dele para distanciar-se de seu objeto.

De fato, o ensino do francês parece hoje reencontar, fora dos círculos da grade curricular da escolaridade pública, uma  dinâmica inédita, como o demonstram pelo menos dois indicadores: por um lado, a sua afirmação nas assim chamadas formações de excelência, como por exemplo nos colégios Pedro II no Rio – 4500 alunos em francês – e Santa Cruz em São Paulo – 850 alunos em francês – e no ensino superior no Instituto Rio Branco e na Poli da USP; por outro lado, a forte recuperação da demanda da procura do francês, nos últimos anos, tanto nas licenciaturas especializadas em francês (450 estudantes matriculados na licenciatura da USP em 2010, contra 150 dez anos antes; 5,8 candidatos por vaga – com anualmente 40 vagas ofertas – no processo seletivo para ingressar na licenciatura de francês na UNB que, álias, abriu em 2009 concurso para contratação de mais 5 professores de francês e 3 de tradução francês – português. Também correspondem à recrudescência de interesse a lotação dos liceus francêses de São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília, com lista de espera de 2 anos para novas matrículas, e a escolha  confirmada do francês como segunda língua estrangeira optativa, após o inglês, na rede dos centros  universitários de línguas.

São sinais, sim, de formas de presença e de vontade de aprendizagem do francês, impulsadas pela densificação dos intercâmbios acadêmicos, científicos e técnicos entre os dois países e pelos projetos de cooperação do Brasil com o continente africano. Mas são apenas sinais, pois o desejo solitário não faz o real nem a persistência de suas realizações.

O conjunto dos aspectos da ausência do francês delimitados anteriormente leva a considerar que a problemática não pode ser abordada fora de resoluções que tornam a aprendizagem do francês solidária não só de conhecimentos plurilingues múltiplos e interligados, mas do reconhecimento do valor de um plurilinguismo aberto à extensão da sua própria multiplicidade na construção de um espaço nacional e internacional comum.

A viabilização de tal cenário plurilingue (ou mas pragmaticamente do esboço dele) passa necessariamente por pelo menos três condições fundamentais.

Em primeiro lugar, claro, precisa-se de políticas públicas para que o plurilinguismo possa cumprir um papel educativo e emancipador, proporcionando condições à apropriação de seu potencial conceitual e comunicativo, sabendo que sujeitos com formação plurilingue podem tornar-se não só profissionais eficientes, mas também, e talvez sobretudo, protagonistas críticos da sua própria história, individual e coletiva. Nesta perspectiva, a ampliação do número de línguas obrigatorias no ensino público (melhor duas LE que uma, três que duas, e assim por diante) e do leque da oferta  pedagógica de línguas diferentes da língua nacional e/ou oficial (LE, línguas autóctonas e fronteiriças) é determinante, no sentido que marca que línguas não são mercadorias ofertas unicamente a quem pode pagar, mas não é suficiente. São necessárias também medidas de reorganização do ensino de línguas em torno da produtividade, comunicativa e identitária, do incessante contato delas no seio do sujeito alvo de uma aprendizagem plurilingue. O que exige de possibilitar a dissociação dos objetivos do ensino (não mais e sempre a totalidade comunicativa de uma língua depois e independentemente da outra, mas conexões flexíveis voltadas para objetivos singulares – comunicativos, estratégicos, cognitivos, afetivos e/ou éticos – em função das línguas e da relação dos sujeitos com cada uma). E, claro, precisa de professores bem formados, aos conceitos chaves da didática plurilingue, as noções de repertório linguístico e de competência linguística em particular, para caracterizar, substituindo respectivamente as próprias noções de língua e de competência de comunicação, o conjunto movel de variedades e recursos linguisticos que coexistem nos sujeitos, e que podem ser mobilizados e alternados com e em funções diferentes para construir uma competência evolutiva de linguagem e autorizar posturas de (re)identificações.

Mesmo expressando a lei, a ação das instituições só tem força de lei ao ser aprovada pelo sentimento público. Um sentimento público que, induzido a optar, como o vimos, para um plurilinguismo binario português / inglês, fica mais ou menos insensível à questão as línguas e não sente o plurilinguismo como um desafio sócio-político maior. Não se pode impôr ao público línguas que ele não quer falar. Só pode ter plurilinguismos educativos se fossem aprovados pelo sentimento público para que possam aplicar-se efetivamente no real. Por isso a extensão sócio-educativa do plurilinguismo exige um trabalho sobre as representações vigentes da problemática das línguas e dos motivos da sua pluralização. É a segunda condição de viabilização do dinamismo plurilingue.

Consiste a impulsar o debate não só dos dirigentes políticos, mas também da sociedade civil sobre as modalidades e finalidades de uma educação e de um repertório plurilingue (natureza do repertório, função e igual dignidade de cada variedade linguística que o constitui, variações no tempo, organização das apropriações e avaliações), vinculando os benefícios esperados da experiência plurilingue (valorização do potencial linguístico e reflexivo de cada um, competências e reconhecimento inter- e transcultural) a valores éticos (a tolerância linguística e o respeito da língua do outro, particularmente quando se tratam de minorias linguísticas e/ou de línguas minorizadas para quais o plurilinguismo é antes de tudo uma obrigação que alimenta conflitos comunitários e desnorteamentos subjetivos) e a princípios democráticos favorecendo uma cultura da reciprocidade e da paz.

Cabe aos pesquisadores e educadores envolvidos na integração reflexiva e civil do plurilinguismo, e às associações de professores de línguas em particular, de contribuir a tais ações de sensibilização do público ao valor do plurilinguismo, que podem tomar as formas mais diversas, dependendo das necessidades locais: desde informações e intervenções dirigidas a setores profissionais específicos (multi)mídia e propaganda, empresas de ensino de línguas e de prestação de serviços linguísticos, departamentos de formação continua de empresas nacionais e multinacionais) até a organização de colóquios, congressos e forums (porque não ao lado do Forum Social Mundial ou do Forum Mundial da Água, um Forum Mundial das Línguas ?) relativos não só à políticas e educação plurilingues, mas também à uma educação civil ao plurilinguismo, já que a experiência plurilingue implica uma necessidade de ethos, de justiça e de direitos recíprocos. Poderia até se imaginar a criação em cada estado do que poderia se chamar de Pólos de Desenvolvimento Intercultural, ou seja, de institutos precisamente encargados não só de destacar a utilidade comunicativa das práticas plurilingues, mas também o seu desafio social e ético, que é o seu desafio por excelência, no sentido que fundamenta a possibilidade mesmo de conceber a igualdade entre os seres humanos.

Em terceiro lugar, a difusão do plurilinguismo, quando se trata de demarcar o francês como sendo uma de seus componentes, implica enfim um trabalho e um debate público sobre as representações desta língua mesma. Deve-se liberar a figura do francês do trio mítico (gênio, clareza, universalidade), que muitas vezes continua afetar sua representação, dando a imagem de uma língua distante e formal (embora não poderia ser mais próxima do português) e, portanto, difícil de aprender. Nesta perspectiva tem que ser explicitada e difundida a ideia básica que o francês não é uma língua justa, mas justamente e simplesmente uma língua como todas as outras: nem menos funcional ou mais poética, nem menos conceitual ou mais convivial, e claro, nem mais universal e menos democrática que outras línguas. E por isso nem menos rentável nem mais difícil para aprender que outras. Tem que facilitar e nutrir a aceitação do que o francês hoje é: uma língua, sim, no meio de todas as outras, singular como cada uma delas; uma língua que não pretende dizer a realidade, e ainda menos falar a verdade, mas unicamente oferecer pontos de vistas sobre si e o mundo, variáveis segundo os registros discursivos mobilizados, e destinados a ser confrontados aos universos construidos pelas demais línguas e culturas. É uma língua estrangeira, como outras línguas estrangeiras no Brasil, de intensidade variável segundo as regiões e as comunidades, cujos efeitos e benefícios dependem dos que os seus locutores reconhecem sua aprendizagem e resolvem de incorporar na experiência própria para sustentar as suas competências e alargar as suas identidades. a atuação, neste plano em particular, das associações estaduais dos professores de francês e da Federação Brasileira dos Professores de Francês (FBPF) é imprescindível. Não há diálogos em línguas que não sejam diálogos entre línguas, alterando necessariamente as suas demarcações e as dos seus sujeitos.

A comunicação plurilíngue, e ainda menos uma comunidade plurilingue, não se fazem com varinha mágica pela única promessa do que seriam as virtudes do compartilhamento plurilíngue. E da mesma maneira, a apresentação dos eventuais benefícios do conhecimento do francês para o cidadão brasileiro também não basta para levá-lo à aprendizagem da língua. Pois a realidade é diferente daquela propagada por uma visão otimista demais da incorporação do plurilinguismo à globalização em andamento: o cenário real do plurilinguismo é bem mais condicionado pelos conflitos e resistências que pelas harmonias e acordos, em outros termos mais determinado por aderências às línguas impostas que por adesões às línguas desejadas.

É mais ou menos neste quadro ambivalente que se encontra a oferta de francês no Brasil: língua de uma potência europeia significativa, mas não mais mundial em si, o francês, como qualquer língua, só pode ser objeto de uma escolha espontânea, mas que enfrenta a pressão inversa do mercado a favor da língua-dolar quase exclusivamente. Fora do inglês e salvo (talvez, progressivamente) o espanhol, por razões regionais óbvias, o francês está em situação instável no Brasil, como em prática todas as outras línguas, estrangeiras e autóctonas.

Trata-se, contudo, de uma ambivalência que não esta desprovida de possibilidades de presença e estabilização positivas, sob a condição fundamental que o francês seja capaz de contribuir a inventar uma resistência renovada ao suave controle exercido por um pesamento e uma língua única, remetendo ao mesmo tempo ao múltiplo e ao coletivo: ao múltiplo, ao oferecer-se no e pelo repertório plurilingue de todas as variações que o (des)fazem sobre ele mesmo para equipará-lo a um sistema aberta às suas hibridações; e ao coletivo, comprometendo-se ao lado de outras línguas, e das mais frágeis em particular, a resistir as intimidações de uma língua gigante, e do fantasma da uniformidade que a acompanha como uma sombra.

É uma alternativa, sim, uma possibilidade possível então... Mas que está ainda longe de poder se tornar realidade no Brasil, como aliás numa boa parte do mundo.  Primeiro porque, mesmo para  sonhar com aprendizagem de línguas múltiplas, precisa-se de um teto e de condições de vida que não sejam de sobrevivência, o que todavia não é o caso de uma parte da população brasileira, apesar dos avanços notáveis do período recente. E segundo porque a renovação da adesão brasileira à apropriações do francês integradas à necessidade de uma dinâmica plurilingue requer um trabalho incansável sobre as representações ainda amplamente lapidadas pela ideia que a diversidade linguística e cultural é o sintoma de um mundo que está desmoronando como um castelo de cartas. Participar da recriação de um coletivo, que seja radicalmente plural e aberto a (des)encontros imprevisíveis, indica um caminho possível, sim, com todas as dificuldadesligadas ao fato do coletivo ser bastante desacreditado nestes tempos de reações individuais à escala das nações e das pessoas.

REFERÊNCIAS

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