“PALAVRAS, AI PALAVRAS! ESTRANHA POTÊNCIA A VOSSA!”
Resumo: Artigo sobre a necessidade de expansão do léxico discente com a seguinte estrutura: aquisição da língua como ampliação da experiência sociocultural; a língua portuguesa e as outras disciplinas da grade curricular; leituras atualmente praticadas na escola; importância da leitura dos clássicos da literatura; base semiótico-funcional; a iconicidade do léxico textual; orientação semiótica da leitura; prática de emprego de itens léxicos para aquisição/domínio da língua.
Palavras-chave: aquisição de língua; leitura dos clássicos da literatura; desenvolvimento sociocultural; competência em leitura e produção de textos.
Abstract: The aim of this article is expanding student's lexicon. This text presents the following structure: language acquisition and expansion of cultural experience, the Portuguese and the other subjects of the curriculum; readings currently practiced in school; importance of reading the classics of literature with approach in semiotics and systemic-functionalism; iconicity from textual lexicon; guidance semiotic reading; employment practice for the acquisition of lexical items to an expanding of language competence.
Key words: language acquisition, reading of classical literature, social and cultural development; competence in reading and producing texts.
O social e o individual na formação do leitor
O título deste artigo evoca poema de Cecília Meireles (“Romance LIII ou das Palavras Aéreas” do Romanceiro da Inconfidência[1]) em que a autora demonstra lindamente a força das palavras e sua repercussão sócio-histórica. Esse é um introito para o tema sobre o qual tento discorrer.
O domínio de uma língua implica aquisição do sistema verbal (formas e normas) associado às experiências socioculturais do falante. Portanto, o ensino da língua deve promover a inscrição do sujeito nas redes de significantes e significados que circulam em seu contexto imediato. Autor e leitor são produtores de discurso e utentes da palavra prévia: as palavras que dizem foram ouvidas/lidas, por isso não são de produção original, têm história anterior. A monologização do pensamento apaga essa origem histórica, e as palavras e expressões vão passando de um falante a outro, indefinidamente, sem que os falantes tomem consciência de que verbalizam o já verbalizado, repetem ideias construídas previamente, reformam/transformam textos anteriores adaptando-as ao contexto imediato, supondo que estão criando formas originais, novas. Por isso, uma das tarefas do ensino da língua é propiciar o encontro com os textos preexistentes, especialmente com os clássicos da literatura, para que os estudantes possam ampliar seu conhecimento de mundo (para além do que aprendem automaticamente em suas práticas privadas de linguagem) e, concomitantemente, expandir seu domínio da língua de que é nativo a partir da aquisição de palavras e expressões emergentes do material lido.
A língua portuguesa e as outras disciplinas da grade curricular
Quando se fala de desenvolvimento da leitura e da escritura, sempre vem à tona o papel do professor de língua materna ou da língua oficial (em países bilíngues). A despeito disso, docentes de todas as disciplinas reclamam a falta de conhecimento da língua por parte dos alunos. Alegam que o trabalho com suas disciplinas fica prejudicado pela falta de competência discente para ler e escrever. Infelizmente esse problema não se restringe ao ensino fundamental; pois há alguns anos, alunos que chegam ao terceiro grau (às vezes ao mestrado e doutorado) apresentam dificuldade de leitura e escritura como uma constante. Será que os docentes ainda não perceberam que o trabalho dedicado à aquisição e domínio da modalidade escrita da língua, com fins de ler com compreensão, interpretar e poder escrever sobre dado tema é tarefa plural, que deve ser realizada por todos os docentes, não apenas pelos professores de português? A resposta é dada pela busca dos professores de língua para solucionar questões verbais oriundas de outras disciplinas: enunciados de questões truncados; respostas discursivas ambíguas, equívocas ou mesmo ininteligíveis; problemas de emprego impróprio de palavras e expressões etc. Isso demonstra que o compromisso com a língua fica restrito aos professores e aulas de língua portuguesa (em nosso caso). Para concluir esta seção, cumpre lembrar que a aprendizagem da língua é parte da formação sociocultural dos estudantes, portanto, o convívio com textos diversos, e em particular com os clássicos da literatura, possibilita não apenas a expansão do domínio verbal, mas principalmente o a ampliação do conhecimento enciclopédico, empírico, dos sujeitos.
Já pude orientar dissertações de mestrado e tese[2] de doutorado que analisaram, na perspectiva linguístico-semiótica, perguntas e respostas de provas de geografia e história. Nessas pesquisas, a autora pode constatar/demonstrar que a imperícia/imprudência verbal pode resultar em incomunicabilidade entre os interlocutores. No caso das questões de prova e respectivas respostas, o resultado sempre penaliza o aluno. No entanto se trata de um problema comum aos dois atores: docente e discente; e o foco do problema que atinge os dois é a dificuldade de expressão verbal.
As leituras na/da escola contemporânea
No ensino de língua, é preciso focalizar a meta do domínio verbal que é a eficácia comunicativa. Assim sendo, não mais é possível ensinar a língua com pretensão de desenvolvimento de habilidades de leitura e escritura sem situar-se na dimensão pragmático-discursiva que leva em conta os gêneros textuais, que são fórmulas textuais circulantes na sociedade e com as quais os sujeitos deverão interagir durante sua prática social.
A literatura crítica sobre o processo de ensino-aprendizagem da língua portuguesa, nos últimos quinze anos, propõe uma mudança de perspectiva. Brito (in CORREA & SALEH, 2007, p. 53-77) propõe o ensino transdisciplinar e faz uma leitura crítica do paradigma disciplinar vigente. Numa linha mais arrojada, insisto no ensino transdisciplinar e enfatizo a ampliação de paradigma de leitura no que tange à seleção de textos, e explico: não é possível desenvolver a competência verbal mais ampla (incluindo a norma culta), sem a prática continuada de leitura de textos mais complexos. Algumas orientações curriculares e de documentos oficiais como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) têm sido mal interpretadas, e a leitura na escola tem ficado restrita às tirinhas, aos quadrinhos (HQs), às charges, aos cartuns, catas, notícias, enfim, gêneros de curtos textos e, geralmente, em linguagem popular, ou no máximo na forma coloquial tensa. Ainda que se saiba que um dos motivos é a necessidade de esgotar o texto em uma ou duas aulas (50 ou 100 minutos), também se percebe que há certa insegurança no enfrentamento de textos cuja estruturação verbal seja mais complexa.
A leitura dos clássicos da literatura
Todavia, a língua culta seria vivenciada nos textos literários clássicos, os quais, além de congregarem “uma nuvem de discursos críticos sobre si”(cf. Calvino, 1993), constituem-se como fonte de enriquecimento enciclopédico e linguístico. Simões & Assis (2013, p. 3), no IV SIMELP trataram do tema (texto inédito aguardando publicação nos Anais do evento) da seguinte forma:
O equívoco de nivelar a linguagem escolar pela prática verbal do novo aluno e, por conseguinte, resselecionar os textos de trabalho de modo a facilitar a leitura e a compreensão, resultou na exclusão do texto clássico e na predominância dos quadrinhos, das propagandas, das notícias, enfim dos textos curtos e de linguagem cotidiana. O texto literário ficou resumido aos contos e crônicas contemporâneos, preferencialmente. A consequência disso tudo é um aluno cujo repertório não resiste à leitura de uma fábula, por exemplo.
Portanto, o que vimos propondo é um ensino de língua em que o domínio das habilidades para ler e escrever se realizem articuladamente com as demais disciplinas, de modo que, para o aluno, fique clara a importância da competência verbal, do domínio gramatical, os quais só serão adquiridos a partir da vivência sistemática com textos de todo tipo com ênfase para os clássicos.
Base semiótico-funcional
Trazendo para o trabalho com textos as instruções semióticas de Peirce e Halliday (1889, 2004), venho elaborando a Teoria da Iconicidade Verbal (SIMÕES, 2009). Nesta ótica, observamos as marcas na superfície que orientam a leitura. Nestas estão as palavras-chave (aquelas que se repetem significativamente no texto, incluindo suas flexões e seus cognatos) e as âncoras textuais (palavras-chave sobre as quais se cruzam mais de uma isotopia — ou recorte temático) (SIMÕES, 2008). Tomados como signos icônicos ou indiciais, palavras e expressões podem funcionar como signos de orientação ou de desorientação. Esta só é traço positivo quando presente em textos estrategicamente construídos com a intenção de gerar ambiguidade, de despistar a atenção do leitor — como os textos da publicidade, os da política e os da literatura. Já os textos informativos, didáticos, manuais de instrução e similares exigem o emprego de signos orientadores, os quais facilitam a leitura, mapeando a linha temática do texto, facilitando-lhe a compreensão e a interpretação.
Na ótica sistêmico-funcional, assumimos a lexicogramática de Halliday (1989) por concordarmos com a noção de que os itens léxicos se articulam segundo a estruturação gramatical para realizar as funções ideacional, interpessoal e textual. Para tanto, o ajuste lexicogramatical se impõe em prol da consecução da meta comunicativa do texto. Assim sendo, a seleção de palavras e expressões deverá contemplar o potencial icônico ou indicial dos itens léxicos, de modo que a trama textual de fato possa representar o pensamento do enunciador e orientar o trabalho do leitor.
A iconicidade do léxico textual
SIMOES, BIEMBENGUT SANTADE&REI(2008) ensinam que
Ao escolher as palavras e construir frases com "precisão do relojoeiro", o texto é bem marcado e oferece orientação explícita para o leitor. Quando o texto é exibido com estas características podem ser classificadas como ícones. E estilística semiótico-funcional - que é o que então nós (eu e minha equipe de pesquisa) prédio - palavras e expressões que funcionam podem ser identificados como âncoras, que definem as questões ou temas. Da mesma forma, é possível apontar conexões componentes gramaticais, lexicais e sintáticas que produzem marcas textuais e é capaz de levar o leitor ao texto significados viáveis. Além disso, palavras-chave e âncoras textuais funcionar como ícones (marcas expressividade - que mostram o alto-falante) e índices (marcas impresividad - levando os sentidos do leitor na produção de seu).[3]
Entretanto, as dificuldades de leitura podem decorrer do próprio material de ensino. Na análise de respostas discursivas, Bomfim diz que:
...algumas hipóteses podem ser formuladas a respeito dos problemas constatados em textos-reposta produzidos por alunos. A primeira delas seria a de que, quando o aluno não entende uma questão de prova, é porque não consegue que a MCP faça a leitura linguístico-pragmático-visual do texto, o que tem respaldo na evidência de que os comandos costumam conter verdadeiros signos desorientadores. Assim o aluno fica impedido de ativar a MLP e toda bagagem de conhecimentos. (BOMFIM, 2008, p. 44)[MCP= memória de curto prazo; MLP = memória de longo prazo]
A MLP se constitui na vivência cotidiana. Reúne em si todo o conhecimento empírico que se registra verbalmente e que constitui o potencial linguístico dos sujeitos. Portanto, a leitura de textos ricos em informação e materialização verbal fornece ao estudante insumos para a ampliação de seu domínio linguístico, em especial de seu repertório. A MCP será decorrente da experiência verbal do sujeito, será alimentada pela vivência linguageira.
Orientação semiótica da leitura
Elegendo contos clássicos como córpus para treinamento de leitura. Venho experimentado trabalhar com textos de Eça de Queirós. A riqueza linguístico-enciclopédica de seus escritos tem permitido comprovar-se que os alunos aprendem a gostar do texto clássico quando entram a conviver com estes sob a orientação de um leitor iniciado. A opção por Eça é a presença de viés irônico que aguça a atenção dos jovens leitores.
Partindo do conto “No Moinho[4]” (1902), extraímos do texto algumas expressões que funcionam como índices-ícones da malícia com que a história é narrada.Vamos ao quadro:
Sem considerar então a produção da ironia, no conto “A Perfeição” (1902), produzida a lista dos substantivos do conto com auxílio do Wordsmith Tools 6.0, foi possível apurar as isotopias:mortalidade, imortalidade, imperfeição, perfeição, perigo, proteção e sofrimento. Os itens de maior ocorrência são:
De posse desse quadro, comprovamos a presença das sete isotopias apontadas a partir do cruzamento dos seguintes dados, tendo o ícone como o signo que representa imageticamente a ideia; o índice como o que induz a certo entendimento e o símbolo por sua natureza convencional:
A partir deste levantamento se torna possível comprovar as interpretações, de modo que o aluno as perceba como emergentes da superfície do texto, e que os signos que a constituem são os garantidores do(s) sentido(s) atribuídos ao texto. Dessa forma, além de adquirir vocabulário novo e apropriar-se de informações relevantes para a sua formação sociocultural, o leitor poderá sentir-se capaz de ler outros textos, pois dele será afastada a ideia de que as interpretações do texto literário têm natureza exótica ou esotérica e só alguns leitores conseguem produzi-las.
Prática de emprego de itens léxicos para aquisição/domínio da língua.
Por fim, a partir desta pequena mostra de palavras, sugere-se propor atividades em que aquelas sejam reempregadas, para que os leitores possam de fato apropriar-se das palavras estudadas.
No Quadro 1 (ref. “No Moinho”), as palavras calva e cassa sempre causam espanto, por não serem de uso corrente no idioleto dos estudantes. Portanto, estas devem ser objeto de trabalho. Essas formas também servem de índices para a distinção entre a variedade brasileira e a variedade europeia da língua portuguesa.
No Quadro 3 (ref. “A Perfeição”), Calipso, Ninfas e Ulisses podem estimular pesquisas sobre a mitologia, para que o recuo no tempo traga mais informações importantes sobre a história das civilizações. As atividades podem ser articuladas com as disciplinas História e Geografia, de modo que o estudante possa situar-se no que é trazido da Odisseia de Homero por Eça de Queirós para seu conto. Esses dados auxiliam no entendimento dos estilos realista, naturalista e romântico na literatura lusófona.
Informações enciclopédicas que emergem das palavras destacadas dos contos:
Considerações Finais
O limite proposto para o texto exige que se conclua a exposição. Assim sendo, seguindo o raciocínio do semioticista italiano, temos a leitura do texto clássico como sendo fundamental para a formação dos sujeitos. Como opero com a leitura e a produção textual, vejo no texto clássico um manancial de dados a serem explorados, a partir dos quais é possível ampliar o cabedal de conhecimentos gerais e, em especial linguísticos e discursivos. Por conseguinte, a premissa de existência de trilhas lexicais a serem seguidas, quando da interpretação de um texto, traz à cena questões sociais e humanas que se repetem ao longo dos tempos. Dessa forma, é possível exercitar os modelos de raciocínio particularizante e generalizante, com que a cognição vai sendo treinada, e sua representação em discurso-texto também entra em atividade sob a proposta de produzir textos reutilizando os itens léxicos estudados.
É patente que algumas palavras e expressões se perpetuam na língua, ao passo que outras caem no esquecimento ou sofrem mudanças semânticas relevantes. Quando o falante não tem conhecimento desses fenômenos, geralmente, incorre em erro de compreensão e de interpretação ao defrontar-se com textos de outras épocas, mesmo que tratem de fatos recorrentes na história do homem e das sociedades. Por isso, julgamos oportuno reativar o trabalho didático com o texto clássico, de modo a dar oportunidade ao estudante hodierno de conviver com discursos-textos que representam outra episteme (FOUCAULT,s/d.), mas que, apesar disso, trazem à tona questões universais, algumas ainda sem resposta.
Referências bibliográficas:
- CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. Trad. Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
- FOUCAULT, M. (s/d) As palavras e as coisas[5]. Trad. António Ramos Rosa. Lisboa: Portugália Editora.
- HALLIDAY, M. A. K.; HASAN, R. Language, context and text: aspects of language in a social semiotic perspective. Oxford: Oxford University Press, 1989.
- HALLIDAY, M. A. K. An introduction to Functional Grammar (Revised by Christian M.I.M. Mathiessen). 3. Edition. London: Arnold. 2004.
- SIMÕES, Darcilia & ASSIS, Eleone Ferraz de. “Por que ler os clássicos?” Comunicação no IV Simpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa – IV SIMELP – UFG. Jul/2013. [Noprelo.]
- SIMOES, Darcilia; BIEMBENGUT SANTADE, Mª Suzett; REI, Claudio Artur O. “Áncoras textuales: iconicidad lectura y producción de textos”.Ponencia en el XV Congreso Internacional de la ALFAL. Montevideo.2008.
- SIMOES, Darcilia. “Âncoras textuais: iconicidade a serviço da leitura e da produção de textos”.Comunicação em Abralin em Cena - Piauí, 2008. Disponível em:www.darciliasimoes.pro.br/textos/textos.htm Acesso em 11/07/2013.
[1]Romanceiro da Inconfidência é uma coletânea de poemas de Cecília Meireles, publicada em 1953. Conta ahistória de Minas dos inícios da colonização no Século XVII até a Inconfidência Mineira, revolta ocorrida em fins do Século XVIII na então Capitania de Minas Gerais.
[2]BOMFIM, Vera Costa Pereira.Como avaliar o texto-resposta em provas de Geografia e História. Dissertação de mestrado. Orientadora: Darcilia Simões. UERJ. 2001; ______. Iconicidade, dialogismo e gêneros do discurso: análise dos textos docentes e discente em provas discursivas. Tese dedoutorado. Orientadora: Darcilia Simões. UERJ. 2008.
[3]Texto original: Cuando se escoge las palabras y se construye las frases con “exactitud de reloj”, el texto resulta bien trazado y ofrece un guía explícito para el lector. Cuando el texto se muestra con esas características se puede clasificarlo como icónico. Y la estilística semiótico-funcional – que es la que entonces estamos (yo y mi equipo de pesquisa) construyendo – permite sean identificadas palabras y expresiones que funcionan como áncoras; las cuales definen los temas o ejes temáticos. De la misma manera es posible apuntar conexiones gramaticales, componentes léxicos y sintácticos, que producen las marcaciones textuales y se muestran capaces de conducir el lector hacia significados viables para el texto. Además de eso, las palabras-clave y las áncoras textuales funcionan como íconos (marcas de la expresividad – que muestran el yo hablante) y índices (marcas de la impresividad – que conducen el lector a la producción de sentidos suyos). SIMÕES et al, 2008.
[4] Atualizado pelo Novo Acordo Ortográfico.
[5]Primeira edição Gallimard, 1966.