Ano 9 - Nº 9 - 1/2015

MACHADO DE ASSIS E O SEU IDEÁRIO DE LÍNGUA PORTUGUESA

Resumo:

Pretende este estudo deixar patente que Machado de Assis, no início de sua atividade literária, tenha presente numa concepção científica da língua, a finalidade maior da gramática, a importância do seu estudo, e o papel consolidador do escritor na construção da língua comum do país e da elaboração da língua literária.

Palavras-chave: Machado de Assis. Língua Portuguesa. Língua Literária.

Abstract:

This study aims to make clear that Machado de Assis, in the beginning of his literary activity, has in view a scientific conception of the language, the main aim of the grammar, the importance of its study, and the writer consolidator role in building the common language of the country and the development of literary language.

Key Words: Machado de Assis. Portuguese Language. Literary Language.

 

Introdução

É opinião corrente afirmar-se que Machado de Assis, se não é o mais correto escritor da literatura brasileira, é dos que melhor a praticaram e mais souberam conciliar a construção clássica e a modalidade espontânea do idioma do seu tempo.

Por tudo isto, vale a pena pesquisar como conseguiu construir o seu ideário linguístico, ainda que não tenhamos informações seguras sobre os passos iniciais dessa construção que, começada muito cedo, como se supõe, continuou por toda a vida do nosso escritor.

Como a mãe é sempre, ou quase sempre, a primeira mestra da linguagem de seus filhos, seguida da colaboração dos demais familiares, o ambiente idiomático de casa deve cedo ter chamado a atenção do menino Machado diante de uma mãe açoriana, branca, e do pai pintor, mulato, ambos com certa instrução: sabiam ler melhor do que, com toda certeza, os demaismoradores do morro do Livramento (atual Providência), próximo à zona portuária, em que nascera o futuro escritor.

Acresce a isto a convivência, como agregados de uma chácara vizinha ao morro, de propriedade de D. Maria José, madrinha do menino, o que favorecia à criança, desde cedo de temperamento solitário, um ambiente cultural diferente daquele  frequentado pelos seus vizinhos. A mãe deve ter coberto o filho de atenção e carinho que merecem os primogênitos e, apesar de ter morrido quando Machado mal contava os dez anos, pôde deixar nele profundas marcas de afeto e lhe ter imprimido o gosto pelo estudo, adjuvando o trabalho de escola primária que frequentara, e o empenho de um padre da Igreja da Lampadosa a quem, parece, o menino ajudava nas missas, como coroinha.

Cinco anos depois da morte da mãe, casou-se o pai com Maria Inês, madrasta que também cobriu o enteado com amoroso desvelo.  Desde cedo deve ter nascido em Machado o gosto da leitura, que também cedo lhe despertou e favoreceu o melhor aprendizado do idioma, o que possivelmente o preparou para, entre os ofícios iniciais a que se dedicaria, exercer as funções de tipógrafo da Imprensa Nacional até 1858, e, mais à frente, revisor e caixeiro da Livraria e Tipografia de Paula Brito, estágio que o aproximou definitivamente da literatura e de ilustres personagens do meio de escritores.

De particular importância para a construção do seu universo linguístico foram sem dúvida as reuniões no Gabinete Português de Leitura com dois dos mais importantes, à época, cultores dos livros e do idioma: Ramos Paz e o filólogo Manuel de Melo. Se o primeiro deve ter sido fundamental para a formação literária do nosso Machado, aproximando-o dos autores nacionais e estrangeiros, Manuel de Melo deve ter exercido nele uma influência seminal sobre a natureza da linguagem, a posição do escritor diante do idioma, sua ação normativa para os leitores do seu tempo. Tal influência favoreceu a propriedadede considerações que Machado, em vários lugares do seu múltiplo fazer literário, emitiu sobre fatos da língua, quer de natureza gramatical, quer de natureza lexical. Manuel de Melo, apesar da sua atuação como homem do comércio, foi dos mais bem apetrechados filólogos do seu tempo; escreveu pouco, pelo menos do que chegou até nós, mas dessas lições sobreviventes, revela-nos uma leitura do que melhor se produzia nos meios mais adiantados no mundo. Riquíssimo acervo bibliográfico existente no Gabinete Português de Leitura sobre filologia e lingüística, em alemão, inglês e francês no século XIX, resulta da aquisição de sua biblioteca particular pela instituição, depois de sua morte, a fim de que não se dispersasse. Seus méritos eram conhecidos e apreciados fora do Brasil. Leite de Vasconcelos nos chamou aatenção para uma nota necrológica de um dos mais conceituados filólogos italianos, Francesco D’Ovidio, acerca de uma resenha de autores latinos editados por Epifânio Dias:

Mentre corrego le bozze, mi sopraggiunge la dolorosa nuova, che uno di loro (referia-se a filólogos portugueses), Manuel de Mello, è morto. Egli era, per verità, un dilettante scrupoloso e coltissimo, che in nulla differiva da un dotto di professione. Ne son prova le Notas Lexicológicas (Rio de Janeiro, 1880) ch’egli aveva impresso a publicare. Conosceva la litteratura italiana, dalla più antica alla più recente, in modo ammirabile, amava vivamente l’Italia; e in Italia è morto! (In: J. Leite de Vasconcelos, Epiphanio Dias, p. 59, n.2).

Tão ausente está Manuel de Melo de nossos estudos de historiografia gramatical de filólogos portugueses e brasileiros que desenvolveram suas atividades no Brasil, que o autor merece uma referência, ainda que breve, neste comentário sobre Machado de Assis. Português de nascimento, natural de Aveiro, onde nasceu em 1834. Exercia as funções de guarda-livros e se aplicava no conhecimento dos modernos idiomas da Europa, particularmente do português. Notabilizou-se entre os contemporâneos e a posteridade com o estudo polêmico contra Adolfo Coelho e Teófilo Braga, maxime sobre o primeiro, intitulado  Da Glótica em Portugal. A composição deste trabalho começou em 1873 e só terminou em 1889, cinco anos depois da morte do autor, ocorrida em Milão, na Itália, aos 4 de fevereiro de 1884.

Em contacto com Ramos Paz e Manuel de Melo, nas reuniões aos domingos no Gabinete Português de Leitura, penetrou Machado de Assis não só no terreno idiomático dos clássicos lusitanos, mas ainda na boa conceituação e compreensão da natureza da linguagem e dos usos linguísticos.

Assim é que, em resenha crítica de 1862 ao Compêndio da Gramática Portuguesa, por Vergueiro e Pertence, saído em Lisboa em 1861, o nosso escritor justifica por que considera o Compêndio “uma obra útil”:

Sempre achei que uma gramática é uma coisa séria. Uma boa gramática é um alto serviço a uma língua e a um país. Se essa língua é a nossa, e o país é este em que vivemos, o serviço cresce ainda e a empresa torna-se mais difícil”. (Assis: 1953, p.21).

E logo adianta:

Quando se consegue o resultado alcançado pelos Srs. Pertence e Vergueiro tem-se dado material para a estima e a admiração dos concidadãos.

Há na gramática dos Srs. Pertence e Vergueiro aquilo que é necessário às obras desta natureza, destinadas a estabelecer no espírito do aluno as regras e as bases, sobre as quais se tem de assentar a sua ciência filológica (ASSIS. 1953, p. 21-22).

Repare-se que Machado de Assis estava com 23 anos ao resenhar o Compêndio, e nessa época já ressaltava o papel importante do desenvolvimento reflexivo da competência linguística dos alunos mediante a aplicação das regras e das bases ‘sobre as quais se tem de assentar a sua ciência filológica’ [entenda-se: a sua competência linguística]. Note-se que o resenhador não insiste na célebre lição de que a gramática é “a arte de ensinar a falar e a escrever corretamente a língua”, como fez o compêndio, mas sim “de assentar a sua ciência filológica.”

Essas considerações do nosso jovem escritor, aparentemente tão inocentes, que uma leitura ingênua poderia deixar passar em silêncio uma distinção teórica importantíssima e antiga, que remonta aos primeiros filósofos gregos que trataram de conhecer melhor e com mais profundidade a essência da gramática e temas a ela, gramática, correlatos.

Discutiam esses gregos se a gramática seria “empeiria”, isto é, pura e simples experiência em ato, ou se seria uma técnica (em grego ‘téchne”), isto é, um saber complexo de “regras’, de noções regidas por um critério e com o propósito de alcançar uma finalidade. A tese vitoriosa foi a de que a gramática seria um técnica, palavra que os romanos traduziram por arte (latim ars).

Já a aquisição de uma língua resulta de uma atividade no âmbito da “empeiria”, porque é um processo que nasce sob o impulso da imitação, não se desprezando um mínimo de reflexão, isto é, como ensina Pagliaro, “de aderência volitiva a determinado sistema expressivo”, e dessa imitação “surge a necessidade de uma norma na qual o ato linguístico possa encontrar a sua plena justificação” (PAGLIARO, 1952, p. 295).

Tudo nos leva a acreditar que Machado de Assis entendia a gramática como uma técnica, isto é, um sistema de noções destinadas a conseguir um fim, no seu dizer, “destinadas a estabelecer no espírito do aluno as regras e as bases, sobre as quais se tem de assentar a sua ciência filológica”. Essas regras e bases no espírito do aluno vão dirigi-lo ao âmbito da ‘empeiria”, já que uma imitação reflexiva o leva a buscar uma norma na qual, como diz Pagliaro (1952, p.295)

o ato lingüístico passa a encontrar a sua plena justificação. Surge assim, por necessidade didática, a gramática, que esclarece a funcionalidade do sistema, fixando-o no esquema ideal, e todavia real, da norma.

Acompanhando os gregos, Machado também parece deixar patente que a gramática nasceu sob um duplo signo: o lógico – cognoscitivo e o didático-normativo.

Tais considerações, ausentes nos compêndios escolares do seu tempo, Machado não as teria haurido, apesar de toda a sua genial precocidade, sem a participação de um mentor;  e esse mentor, para nós, não poderia ser outro senão Manuel de Melo, dono de uma ciência filológica e linguística comprovada pela exaustividade bibliográfica de livros técnicos relacionados nas notas de rodapé do seu Da Glótica em Portugal.

Outro aspecto que se há de ressaltar nas citadas palavras de Machado é a relação desse saber filológico de cada utente ou usuário da língua com o saber dos demais utentes do país na construção de uma unidade idiomática mais ampla, de caráter nacional, unidade que iria construir aquilo a que ele mesmo, em célebre artigo estampado em O Novo Mundo, em Nova York, em 1873, chamou Instinto de Nacionalidade. Vale a pena recordar o que declara o jovem Machado com apenas 23 anos, em 1862:

Sempre achei que uma gramática é uma coisa séria. Uma boa gramática é um alto serviço a uma língua e a um país. Se essa língua é a nossa, e o país é este em que vivemos, o serviço cresce ainda e a empresa torna-se mais difícil. (ASSIS, 1953, p.21).

Isto para concluir que uma gramática procura assentar em cada falante da língua de um país a sua ciência filológica [entenda-se: a sua competência linguística], cuja unidade espelha o instinto de nacionalidade, dentro do conjunto de outros saberes nacionais, para se consubstanciar numa futura construção da consciência de nacionalidade mediante a língua.

Quase cem anos depois dessa resenha, o italiano Antonino Pagliaro, um dos cinco mais esclarecidos e geniais linguistas do século XX, repetia com maior profundidade e agudeza, mas com a mesma essência de verdade, do alto de sua excelsa competência:

A língua constitui a imagem mais completa e genuína da fisionomia natural e histórica dos povos. Disse-o, há mais de um século, Guilherme von Humboldt, bom conhecedor de assuntos desta natureza e, pelo que sei, ninguém jamais o contradisse. Acrescentava ele que a índole espiritual de uma comunidade e a estrutura da língua estão intimamente tão ligadas entre si que, conhecida uma, a outra devia com facilidade deduzir-se da primeira. Sobre isso não há controvérsia: a língua, representando por um lado a maneira natural através da qual um povo vê e conhece a realidade, sistematizando-a e organizando-a nos sinais de classificação que são as palavras, encerra em si, por outro, o reflexo de todas as experiências internas e externas, de todas as conquistas e de todos os contrastes, por que esse povo passou na cadeia das gerações.

De resto, observamos o mesmo na fala individual; nada revela melhor a fisionomia interior de cada indivíduo, a sua inteligência ou obtusidade, a sua cultura ou ignorância, o seu gosto ou tacanhez, do que a sua expressão linguística; mas também as maneiras da sociabilidade, o meio, a ocupação, a companhia que frequenta, o bairro em que habita, dão à fala de cada um indício que permitem uma identificação fácil e imediata (PAGLIARO. 1983, p. 95-96).

Por tudo o que vimos até aqui, fácil nos é concluir que estas noções correm paralelas ao conceito de “língua comum”, cuja importância linguística, social e histórica tem aguçado o interesse dos linguistas, sociolinguísticas e historiadores da cultura.

Essa consciência de que os homens de uma comunidade constroem e garantem pela língua comum a identidade nacional, um evidente “instinto de nacionalidade”.

O já citado Antonino Pagliaro ressalta magistralmenteo que acabamos de dizer:

(...)a língua comum é a expressão de uma consciência unitária comum, que pode ser cultural em sentido lato, como acontecia na Itália do século XIV ou na Alemanha de Lutero, e pode ser política, como é o caso das atuais línguas nacionais; nela temos sempre um fator volitivo que leva as comunidades a superar as diferenças mais ou menos profundas dos falares locais, para aderir pela expressão a uma solidariedade diferente e mais vasta. Por outras palavras, quem, deixando de parte o dialeto nativo, passa a falar a língua comum, exprime através desse ato a sua adesão volitiva a um mundo mais vasto, determinado cultural ou politicamente, ou então, como acontece nos estados nacionais modernos, pelas duas formas. (PAGLIARO.1983, 142-143).

A intuição de Machado de Assis de que o conceito de língua comum cabia perfeitamente à língua portuguesa escrita padrão praticada em Portugal e no Brasil levou-o a não adotar a opção daqueles brasileiros para quem as diferenças de uso entre os dois países justificavam, com nítida pressa e pouca fundamentação teórica, a necessidade de se considerar a existência de dois idiomas distintos, mormente depois de nós nos termos separado da antiga metrópole em 1822, e nos termos constituído como nação independente. Era essa a tese, entre outros, de Macedo Soares e Paranhos da Silva, aí pelo último quartel do século XIX. Machado chega a dizer isto de maneira felicíssima: este princípio é antes “uma exageração de princípios”.

Por essa mesma intuição nosso Machado entendia que a unidade linguística em que se assenta a língua comum não é, em rigor, uma unidade de fato, mas, como ainda mais tarde ensinaria Pagliaro, “um esquema no qual encontram lugar todas as concordâncias substanciais que se verificam nas variedades dialetais” (PAGLIARO. 1983, p. 140).

Doze anos depois da resenha do Compêndio da Gramática Portuguesa, de Vergueiro e Pertence, em 1873, no já citado escrito “Instinto de nacionalidade”, Machado implicitamente volta à opinião ali expendida, segundo a qual “uma boa gramática é um alto serviço a uma língua e a um país”, e se essa língua é a nossa, e o país é o nosso, o serviço cresce ainda, e a empresa torna-se mais difícil:

Entre os muitos méritos dos nossos livros nem sempre figura o da pureza da linguagem. Não é raro ver intercalados em bom estilo os solecismos da linguagem comum, defeito grave, a que se junta o da excessiva influência da língua francesa.

Aproveita o escritor o momento para aludir à existência daqueles autores que fogem aos padrões da língua escrita culta pelo propósito de diferenciar o uso brasileiro do português, propósito que ainda não assumirá a opiniãoiconoclastade Monteiro Lobato que, muitos anos depois, viria a declarar que, assim como o português saíra dos erros do latim, o brasileiro sairá dos erros do português:

Este ponto é objeto de divergência entre os nossos escritores. Divergência digo, porque, se alguns caem naqueles defeitos por ignorância ou preguiça, outros há que os adotam por princípio, ou antes por uma exageração de princípios.

E acertando o passo com a melhor lição acerca de como se há de entender a correta política idiomática na consolidação normativa da língua comum, justifica-se:

“Não há dúvida que as línguas se aumentame alteram com o tempo e as necessidades dos usos e costumes. Querer que a nossa pare no século de quinhentos,é um erro igual ao de afirmar que sua transplantação para a América não lhe inseriu riquezas novas. A este respeito a influência do povo é decisiva. Há, portanto, certos modos de dizer, locuções novas, que de força entram no domínio do estilo e ganham direito de cidade.

Mas se isto é um fato incontestável, e se é verdadeiro o princípio que dele se deduz, não me parece aceitável a opinião que admite todas as alterações da linguagem, ainda aquelas que destroem as leis da sintaxe e a essencial pureza de idioma. A influência popular tem um limite; e o escritor não está obrigado a receber e dar curso a tudo o que o abuso, o capricho e a moda inventam e fazem correr. Pelo contrário, ele exerce também uma grande parte de influência a este respeito, depurando a linguagem do povo e aperfeiçoando-lhe a razão” (Assis: 1953, p. 147).

A resenha ao Compêndio da Gramática Portuguesa, de Vergueiro e Pertence nos patenteia que desde cedo Machado de Assis, pelas leituras pessoais e pelo contacto com filólogos amigos como Ramos Paz e, principalmente, Manuel de Melo, tinha da linguagem, da língua, da gramática e da ação normativa do escritor na normatização da língua comum, ideias bem avançadas para seu tempo e que hoje poderiam ser repetidas por filólogos e linguistas profissionais.

O que teve a oportunidade de nos deixar nessa resenha de 1862 e no artigo de 1873 acreditamos que foi de capital importância para o ideário da Academia Brasileira de Letras relativamente à sua posição e às suas tarefas sobre a língua portuguesa e a sua unidade superior com Portugal. Esse ideário está bem definido no Art. 1o dos Estatutos da Instituição, quando diz que ela “tem por fim a cultura da língua e da literatura nacional”, e com o substancioso e programático Discurso inaugural de Joaquim Nabuco, na qualidade de Secretário-Geral, quando declara, ao tratar da língua portuguesa no Brasil:

A língua é um instrumento de ideias que pode e deve ter uma fixidez relativa; nesse ponto tudo precisamos empenhar para secundar o esforço e acompanhar os trabalhos dos que se consagrarem em Portugal à pureza do nosso idioma, a conservar as formas genuínas, características, lapidárias da sua grande época. Nesse sentido nunca virá o dia em que Herculano, Garrett e os seus sucessores deixem de ter toda a vassalagem brasileira. A língua há de ficar perpetuamente pro indiviso entre nós.

Essa vassalagem de que nos fala Nabuco é um aspecto daquela adesão volitiva de que nos fala Pagliaro e que um pouco mais de meio século depois do Secretário-Geral da instituição acadêmica repetiria destacado literato espanhol, Pedro Salinas, imbuído das mesmas convicções acerca da função niveladora da língua comum e do papel dos cientistas e artistas envolvidos nessa ação normativa:

La admisión de la realidad de la norma lingüística no debe entenderse como sometimiento a una  autoridad académica inexistente e innecesaria sino a la compreensión del hecho de que en todos los países cultos de Iberoamérica se emplea una língua general basada en la fidelidad al espíritu profundo del lenguaje y a su tradición literaria. La norma lingüística brota de una  realidad evidente. Hay aún algunos filólogos a caballo en su doctrina naturalista de que el lenguaje no tiene jerarquías de excelencia o bajeza y que todas sus formas, por el simple hecho de existir, son igualmente respetables (SALINAS. 1970, p. 77).

No discurso de encerramento do ano acadêmico de 1897, o primeiro da novel instituição, assinala Machado, entre as tarefas para 1898, colher:

se for possível, alguns elementos do vocabulário crítico dos brasileirismos entrados na língua portuguesa, e das diferenças no modo de falar e escrever dos dois povos, como nos obrigamos por um artigo do regimento interno.

E depois de dizer que essa tarefa deve ser levada com muito critério crítico e paciência, conclui com certeiras ponderações de um filólogo:

A Academia, trabalhando pelo conhecimento desses fenômenos, buscará ser, com o tempo, a guardiã da nossa língua. Caber-lhe-á então defendê-la daquilo que não venha das fontes legítimas, - o povo e os escritores, - não confundindo a moda que perece, com o moderno, que vivifica. Guardar não é impor; nenhum de nós tem para si que a Academia decrete fórmulas. E depois para guardar uma língua é preciso que ela se guarde também a si mesma, e o melhor dos processos é ainda a composição e a conservação de obras clássicas. A autoridade dos mortos não aflige, e é definitiva.

 

Considerações finais

Esse ideário filológico e linguístico está patente não só no seu discurso, mas ainda na sua ação de escritor. Assim é que no seu tempo a caça aos galicismos, praticamente resumia a tarefa dos puristas; Machado criticava o excesso de galicismos, mas o agasalhava, quando necessário ou funcional às necessidades do estilo. Ao ser criticado em nota anônima por ter empregado no conto O alienista o francesismo reproche, defendeu-se dizendo que, além de não ser galicismo, pois encontrara nos clássicos reproche e o verbo reprochar, e ainda porque achava foneticamente insuportável o correspondente vernáculo exprobração. E conclui: “Daí a minha insistência em preferir o outro, devendo notar-se que não o vou buscar para dar ao estilo um verniz de estranheza, mas quando a ideia o traz consigo” (Assis: 1882, p. 293).

O esforço de cultivar o modelo de sua língua literária fez que Machado acompanhasse a boa lição da normatividade proclamada pelos bons autores. Na última fase de sua produção literária o escritor eliminou solecismos que corriam na língua escrita entre os séculos XVIII e XIX. Assim é que acomodou o verbo haver no singular, como impessoal, como sinônimo de existir, na última fase dos seus escritos. Essa sintaxe vingou entre bons escritores do século XVIII como Matias Aires e foi agasalhada no século XIX. Machado não fez exceção, e até na resenha ao Compêndio de Vergueira e Pertence deixa escapar “Metódico no plano e claro na definição, não sei que hajam outros requisitos a desejar ao autor de uma gramática (...)” (p.22).

Vale lembrar que um gramático do porte de A. G. Ribeiro de Vasconcelos, na p. 254 n. 1 de sua Gramática Portuguesa (s/d, mas de 1900), considerava artificial o uso do verbo haver no singular, explicando o plural por atração.

Também Machado usou o verbo fazer no plural aplicado a tempo (Fazem três dias) até a fase dos Contos fluminenses, corrigindo-se depois para Faz três anos, na última quadra de seus escritos.

Oxalá tenhamos podido, ainda que esboçado, tratar de um tema que está a exigir pesquisa mais aprofundada, fixar os alicerces teóricos e funcionais do ideário linguístico deste grande artista da língua portuguesa, e da influência que, nesta realidade, pelo prestígio patente de sua estatura intelectual, exerceu sobre os escritores do seu tempo e dos que depois, consciente ou inconscientemente, vieram a integrar-lhe a corte e a vassalagem.

INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS

  • ASSIS, Machado de (1953) [1862] Crítica Literária. “Resenha ao Compêndio de Língua Portuguesa”, por Vergueiro e Pertence. “In Crítica Literária, Rio de Janeiro, W.M. Jackson. Editores, 1953.
  • (1953) [1872] “Literatura Brasileira – Instinto de Nacionalidade”. In Crítica Literária.
  • (1882) Papéis Avulsos. Rio de Janeiro, Lombaerto & C., 1882.
  • (2000) [1897] “Discurso do Sr. Machado de Assis”. Inauguração da Academia. In Discursos Acadêmicos Tomo I – Academia Brasileira de Letras, (Rio de janeiro, 2005).
  • (2005) [1897] “Discurso do Sr. Machado de Assis “Encerramento do 1o ano acadêmico. In Discursos Acadêmicos, Tomo I.
  • Discursos Acadêmicos (2005), Tomo I; volumes I-II-III-IV. 1897-1919. Academia Brasileira de Letras, Rio de Janeiro, 2005.
  • MELO, Manuel de (1872). Da Glóttica em Portugal. Carta ao autor de Diccionario Bibliographico Português. Rio de Janeiro, Typographia Perseverança, 1872.
  • NABUCO, Joaquim (1897).“Discurso do Sr. Joaquim Nabuco”. In: Discursos Acadêmicos”, Tomo I, 2005.
  • PAGLIARO, Antonino (1983) [1951]. A Vida do Sinal. Ensaios sobre a língua e outros símbolos. Tradução e prefácio de Aníbal Pinto de Castro. 2a ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1983.
  • VASCONCELOS, José Leite de (1922). Epiphanio Dias. Sua vida e labor científico. Lisboa, Imprensa Nacional de Lisboa, 1922.
  • VERGUEIRO – PERTENCE (1801). Compêndio da Gramática Portuguesa. Lisboa, Imprensa Nacional, 1861.