Ano 9 - Nº 9 - 1/2015

Apresentação

Consciente das implicações que a História do Ensino das Línguas trazem para a realidade educativa brasileira, o Editor Chefe da Revista HELB pensou a edição deste volume especial do periódico voltado integralmente ao ensino da Língua Portuguesa como L1 no Brasil. Agradeço a imensa confiança em mim depositada para atuar como organizadora deste volume histórico. Esse encargo prestigioso se deveu muito provavelmente à conclusão, no ano de 2014, de um estudo inicial sobre a história do Ensino de Português como Língua Materna (L1) no Brasil (CARVALHO, 2014).

O conteúdo deste número da HELB que aqui trago à luz advém do reconhecimento, tanto dos editores quanto do potencial público leitor, da necessidade de dispormos, no conjunto das histórias de ensino de línguas (segundas), da figuração do ensino da Língua Portuguesa (como língua primeira) nesse cenário, no qual se evidenciam relações específicas da área de Ensino de Língua(s) com as da Linguística Geral e da Linguística Aplicada.

O conjunto de artigos apresentados neste volume se constitui como uma contribuição valorosa de autores preocupados com o ensino da Língua Portuguesa, fornecendo dados relevantes sobre esse campo do ensino oriundos da Linguística e da Linguística Aplicada para a investigação do Ensino de Língua(s). São bem conhecidos de muitos de nós, os autores que integram este volume: Leonor L. Fávero, Evanildo Bechara, Maria Cecília Mollica e Marisa Leal, Darcília Simões, Rita de Cássia Dionísio, Afrânio G. Barbosa. Assim, o volume se apresenta numa estrutura modular de artigos dos mais abrangentes para os mais específicos em temática, o que permite que cada texto seja independente, mas facilitando o acesso gradual ao universo do estudo e da investigação sobre o Ensino da Língua Portuguesa como L1.

Abre-se este volume com o artigo de Leonor L. Fávero, intitulado “Reflexões sobre a Escola na Primeira República: O Ensino de Português”. Nesse artigo, Fávero revela-nos a implantação do Método Intuitivo nas escolas da Primeira República (1889-1930), explicitando a metodologia necessária para o estudo e revelando no percurso falhas do método implantado devido à formação dos professores de então. Com esse artigo, a autora estabelece como pano de fundo a problemática geral da formação de professores de Língua Portuguesa vivenciado ao longo da história das práticas pedagógicas e vivo entre nós até hoje.  

O segundo artigo desta edição da Revista HELB é uma reedição com acréscimos do artigo do eminente gramaticista brasileiro Evanildo Bechara intitulado “Machado de Assis e o seu Ideário de Língua Portuguesa”. Esse texto se ocupa de entradas possíveis ao estudo formal da Língua Portuguesa como meio para se desenvolver um escritor – neste caso o grande romancista brasileiro Machado de Assis, de brilhante trajetória na segunda metade do século 19. Bechara revisita os contextos em que os estudos gramaticais da língua portuguesa favoreceram a formação da competência linguística do escritor Machado de Assis e seu gênio criador. O artigo sublinha a percepção indelével dos estudiosos da Língua que uma competência linguística, regida por um corpo coeso de convenções cujas regras são claras e acessíveis ao escritor, coopera de modo decidido para o domínio da língua e, em seguida, para a maestria do uso daqueles recursos da linguagem para se obter o domínio literário.

O terceiro artigo intitulado “Fragmentos de Memória: Arquivo da História e da Paixão no Ensino Superior” de Dionísio; Moraes; Rebello e Almeida; Oliveira de Jesus; Freitas; e Veloso desprende-se de um projeto, coordenado por Rita de Cássia Dionísio, de investigação de “rememoriação do passado através de textos ficcionais” para descobrir a formação do professor. Nesse artigo de Dionísio et alii, o professor aposentado compartilha sua memória e reafirma a sua identidade esquecida nos porões do tempo.  Ao introspectar para alcançar o passado de ensino, o participante reconstrói a sua formação e sua identidade de professor aposentado ajudando, assim, a repensar e redefinir a formação do professor de hoje.

O quarto artigo “Linguagem e Matemática em Cartas: trabalhando na EJA” de Maria Cecília Mollica e Marisa Leal desenvolve o tema da interdisciplinaridade – Português e Matemática – e para isso, as autoras utilizam o gênero textual epistolar da carta.  Mollica e Leal utilizam a interdisciplinaridade (tão discutida, mas muito pouco utilizada nas práticas de sala de aula) como parte de um “método” (por ser um procedimento, uma atividade) para começar a investigar certos ‘problemas’ de aprendizagem das duas disciplinas. E para dar condições à interdisciplinaridade, o gênero carta estabelece uma decisão teórica e uma releitura dos usos linguísticos desse gênero na contemporaneidade. O trabalho interdisciplinar entre as disciplinas Língua Portuguesa e Matemática revelou que a carta tão ligada ao passado, mas indissoluvelmente ligada ao presente por meio do processo interpretativo revelou o ponto nevrálgico da aprendizagem das duas disciplinas - a interpretação.

O artigo de Darcília Simões, quinto texto na sequência formulada, intitulado “Ai palavras, ai palavras! Estranha potência a vossa!”, volta-se para a importância da leitura de autores clássicos da literatura portuguesa e brasileira para permitir fundar os processos interpretativos na dinâmica da aprendizagem da língua portuguesa. Simões mostra que o processo interpretativo de textos literários é uma ação de cooperação entre o signo, o significado e o interpretante. O artigo de Simões defende o uso de textos literários mais complexos, pois a partir de sinais ou indícios contidos no próprio texto, estes revelam ao aluno a necessidade de uma competência enciclopédica.  E para que a competência enciclopédica favoreça a interpretação, a autora defende que a interdisciplinaridade deva atravessar todo o sistema de ensino para a inferência de conhecimentos e se fundar na aprendizagem da Língua Portuguesa.

O sexto artigo de Afrânio G. Barbosa, em parceria com suas alunas Juliana Cristina S. Garcia e Maria Izadora M. Zarro,intitulado “História Oral e Práticas de Ensino de Língua Portuguesa: Testemunhos Pessoais como Fontes Primárias para uma Sociolinguística Histórica”, investiga os relatos orais das vivências pedagógicas em sala de aula de Língua Portuguesa, para demonstrar as dissonâncias entre práticas pedagógicas e teorias e até mesmo da norma da língua portuguesa. O artigo demonstra, por meio da investigação oral, que a história individual indicia como o ensino de língua portuguesa vem sendo transmitido de geração em geração, revelando as atividades dos professores em sala de aula como embasadas em crenças e hábitos de ensinar além de valores que orientam cada época.

Fecha-se esta edição com a resenha do surpreendente livro de José Ricardo Pires de Almeida, Instrução Pública no Brasil (1500-1889), publicada no mesmo ano da queda da monarquia imperial brasileira, resenhadopor Narciza Brito Damaceno e Denise Gisele Britto Damasco. A resenha desse livro é importante, pois ajuda a construir o caráter político da educação pública brasileira.  Abarcando os dados sobre leis e fatos do período imperial relativos às questões educacionais no Brasil, o livro de Pires de Almeida foi originalmente escrito em francês e publicado em 1889 com dedicatória ao Conde D’Eu, genro de Dom Pedro II.

A seleta de artigos compõe, pois, a edição inusitada de um número desta Revista digital dedicada ao ensino de Língua Portuguesa na condição de língua materna dos estudantes. A condição de “ensinar a língua que os estudantes já possuem” é um desafio ao nosso pensar para que se evite o absurdo e se tome esse ensinar como a expansão de repertórios, registros e variantes assumindo uma responsabilidade de perceber que a proposta permite vislumbrar questões importantes da história do ensino de Língua Portuguesa como L1. É fundamental revisitarmos o passado na inspeção de vivências de práticas pedagógicas contemporâneas, a fim de aquilatarmos o caminho já percorrido, sua justificativa e condições contextuais distintas que permitiram aos professores ensinar a LP como a ensinaram e ensinam, isto é, suas bases de conhecimento, atitudes e filosofia. Eis o sentido amplo do conjunto de artigos coligidos nesta edição, não a do julgamento do acertado ou equivocado, mas o sentido da tradição que vem se alojar ao lado da ciência possível do ensino contemporâneo de línguas para construir respostas que precisam ser dadas ao hoje.

 

Referência

CARVALHO BATISTA, Marília Pontos e Entrepontos: Apontamentos Cronológicos para uma Narrativa Histórica do Ensino de Língua Portuguesa- L1 em Ambiente Escolar no Brasil. Brasília: Departamento de Línguas Estrangeiras e Tradução, Universidade de Brasília, 2014, 255 fls. Dissertação de Mestrado.

Marília Carvalho Batista
(Organizadora convidada)
Lisboa, dezembro de 2015.